O
armário da infância
Texto de Tatiana Rocha
Meu
mundo era coberto de riso e música.
Todos
os domingos o velho AKAI de rolo de meu pai gemia alto
as vozes de Chico, Bethânia, Noel. Todos os sambas que
carrego comigo soaram naquele velho AKAI.
Violão,
cavaquinho, bandolim, minha mãe com sua suave voz de contralto,
meu pai, magro e alto, controlava sua orquestra caseira
só com olhares. Eu sentia que ele queria que eu fizesse
aquela parte, que soltasse a nota mais aguda. E eu uivava
pra lua, feliz da vida. Meu irmão penava para controlar
as variações naturais da voz. Mas insistia e mais uma
voz se fazia ouvir. Minha irmã, pequenina de dar dó, sacudia
o que para ela era um lindo caxixi e ninguém contava que
o que ele balançava era um caixinha de fósforos simples
e singela. E tua soava lindo...
Um
dia meu pai morreu e levou com ele a vontade de cantar.
Foram
meses de silêncio triste.
Minha
varanda, sempre tão povoada de música, ficou melancólica
e solitária e os instrumentos abandonados no fundo de
um armário. Eles também sentiam no corpo a ausência. O
silêncio pesava em todos nós. Aquele armário guardava
a alma de meu pai. Parecia que a chave velava a lembrança,
como que, se abríssemos a porta, toda a música que existia
em nossa casa subiria aos céus, como fumaça mágica, levando
com ela a alma de meu pai. Ninguém ousava correr tanto
risco. E o silêncio reinava como tirano cruel.
Um
dia a nova empregada resolver fazer uma grande limpeza.
Tirou pás e mais pás de poeira, arrancou teia de aranhas,
matou famílias inteiras de insetos e, sem saber, tirou
os violões do fundo da escuridão, passou lustra móveis,
poliu, fez nascer o brilho outra vez e deixou na sala,
encostados em um paredes. São tão bonitos! Judiação esconder,
dizia.
Quando
eu entrei em casa nem me dei conta que estavam ali. Mas
existia uma sensação, uma percepção de que alguém me olhava,
me pedia alguma coisa, era um lamento sem som, uma súplica
de nem sem onde . Levantei os olhos e vi o menor violão
olhando pra mim.
-
Me toca.
-
Não sei.
-
Sabe sim... se lembre
-
Não quero. Nunca toquei violão.
-
Me salve.Tô no escuro e no silêncio.
Magia.
Durante
dois meses não larguei aquele violão. Voltei a velha varanda
e perturbei todos com minha insistência.
Aos
doze anos descobri o que queria fazer. E fiz.
Hoje
carrego um outro violão comigo porque aquele primeiro,
aquele que foi de meu pai, foi roubado e eu chorei muito.
Hoje
quando sento em uma roda de samba, quando canto as velhas
canções de Cartola, Noel, Assis Valente, quando sou voz
e luz sinto que, sobre meus ombros, meu pai sorri. Libertamos
a sua alma quanto libertamos os instrumentos.
Todos
meus irmão tocam violão, meu sobrinho toca violão, meu
filho começa a dedilhar. Cada um carrega um pedaço do
meu pai em si. E quando eu vejo isso, sinto por sobre
meus ombros, suas mãos, e sua voz vibra em meus ouvidos:
eu estou aqui, minha filha, eu estou aqui.
E
rio porque descobri como me perpetuar na eternidade.
Descobri
como se vence a morte.
Cantando