TEXTOS & INÉDITAS
 

Deus por um dia
Texto de Tatiana Rocha
24 de novembro de 2005

Dirigia calmamente, filosofando ao som de uma musiquinha qualquer, pensando nas inquietudes da vida, refletindo na grande merda que estava este mundo. Um grande erro. Realmente, não era de se surpreender com a existência de uma religião que se chama Universo em Desencanto. A humanidade deve ser mesmo um equívoco, como eles dizem. Deus fez cagada, com certeza, e se fosse um funcionário de alguma grande multinacional seria despedido por resultados insuficientes. Deus estaria agora na fila de desempregados esperando sua vez, mais uma chance.

Acordou no quarto do hospital. Diziam que teve um acidente politraumático, comprometeu o baço, bacia quebrada, perda de dois dentes e uma forte pancada na cabeça gerando um edema cerebral. Pelo jeito, sua blasfêmia teve um preço.

Os médicos esperavam para analisar o quanto suas capacidades tinham sido comprometidas e não se surpreenderam quando ele começou afirmar que era Deus. Coitado, ficou xarope. Os residentes que trabalhavam naquela ala gostavam de passar por seu quarto e puxar conversa, o cara era bem informado, discutia filosofia, metafísica, retrucava com habilidade, fazia os dias de plantão menos tediosos mas, na verdade, ninguém acreditava naquela sandice de ser Deus.

E quanto mais afirmavam que ele não era o que dizia ser, mais fraco ele ficava. Os batimentos cardíacos estavam irregulares, sua pressão oscilava, entrou em coma.

Deus tá em coma, brincavam as enfermeiras. Coitado!

Uma parada cardíaca!

O chefe do departamento proibiu qualquer comentário sobre a divindade ou não do paciente. Sabe-se que algumas pessoas, depois que saíam do coma, descreviam com detalhes o que tinha ocorrido e se o maluco achava que era Deus e isso fazia ele ficar estável, então ninguém mais discordaria. Pelo menos não em voz alta.

As piadinhas continuaram na surdina e a vida do homem por um fio até que, no meio da noite, Deus morreu.

Foi aquela comoção no hospital. Pôxa, o cara era tão legal, era o perfeito Maluco Beleza, como pode alguém tão rápido ir perdendo as forças, ir desistindo assim???

Foi aí que o chefe de departamento retruca, muito sério:

-Deus morre no exato instante que não se acredita mais nele.

 

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Última atualização em 07 de outubro de 2009