Crítica
ao incriticável
Blog Para Poucos
Ronaldo Faria, jornalista
http://www.parapoucos.blogspot.com
09/02/2006
Eu
sempre desconfiei que Deus não existe. Na verdade, depois
que escrevi um roteiro de vídeo para a Secretaria de Educação
do Estado reciclar seus professores sobre religião e tive
acesso a um excelente material da história e gênese das
religiões, tive a certeza. Coisa de grupos sociais se articulando
uns para dominar os outros na força e na ideologia. E como
somos todos uns cagões em relação à finitude, nada melhor
que um ser superior para nos redimir, principalmente se
antes da morte vivemos uma vida sem conquistas comuns aos
meros mortais, como o direito aos mínimos "mimos sociais",
como casa para morar, educação, saúde, lazer, salário, bens
de consumo e outras tantas benesses. O ser superior regula
a revolta, mantém o "poder" no poder e deixa a ralé, reles
e vilipendiada, sem uma revolta generalizada. Pão, diversão
e religião aos miseráveis.
E
porque um intróito religioso para falar de um CD? Simples.
Tatiana Rocha é a prova exata, materializada, que Deus não
existe. Como pode uma artista do seu calibre ficar vendendo
planos de saúde sob o sol, correndo de baratas no banheiro
e entregue aos bares de clubes "familiares". Não que a saúde
não valha nada (sem ela somos ninguém), as baratas não tenham
seu lugar na Terra (qual?) e os clubes "familiares" tentem
ser um espaço de cultura (graças a "Deus" há várias culturas
além desta). Mas Tatiana Rocha devia estar noutro estágio.
Está
certo que entre uma estrada e outra há um rio caudaloso
e frio, entre uma barata e outra sobra um xampu salvador
e um livro sempre rola no intervalo de shows ruins. Mas
e o tempo perdido neste caminho, quem devolverá? Ouvindo
o segundo CD, "Tatiana Rocha", vejo que houve uma evolução
harmônica, melodiosa e musical em relação a "Um Pouco Acima
do Chão", seu primeiro CD. Não que o primeiro seja ruim,
ao contrário. Mas neste de agora há uma mulher inteira arrancando
a sua voz e as suas emoções. Talvez por isso o CD leve o
nome da artista. É ela quem está lá. No nível do chão e
ao mesmo tempo bem mais acima deste.
Conheci
Tatiana Rocha em um show no extinto Café La Recoleta, numa
noite de 1998, quando eu ainda era editor-chefe da Tribuna
de Campinas. Estávamos eu, o japonês e o eterno fotógrafo
Waldemar Padovani, que nos deixou um dia para fotografar
o céu. E olha que ele deve estar dando trabalho para São
Pedro, pedindo para ele subir na mesa, fazer uma pose, deixando
de parecer robô para sair na foto. Isso sem levar em conta
que vai pedir jabá a todo anjo que abusar da sua boa vontade.
Mas aquela foi uma noite gostosa. E lá estávamos os três
a brindar o jornal ou discutir as besteiras comuns de uma
mesa de bar. Não lembro.
Mas
lembro da Tatiana, inteira no palco, acompanhada de um percursionista
a soltar a voz. Sou um apaixonado por música e compro tudo
que posso. Se vendessem CD nos semáforos, ao invés de balinha
e drops, não tinha salário que desse... E eis que após a
apresentação e a cantora morena dar uns longos malhos no
percursionista, ela começou a correr as mesas vendendo o
seu peixe. E seu CD. Comprei de primeira. E nem por ser
Tatiana Rocha, uma morena que parece japonesa com seus olhos
puxadinhos, pois já comprei CD de bicho-grilo em Mauá, de
cantor de restaurante em Natal, de sambista meia-boca no
Rio e grupo de idosos em Paraty, além de outros tantos em
outras cidades e cantões. E nenhum deles tinha a "presença"
de vendedora da Tatiana. Comprei porque gostei e nunca me
arrependi.
Volta
e meia ainda ouço o CD autografado dela: "Pro Ronaldo, com
todo carinho, um super beijo, Tatiana Rocha." Mas este novo,
sem autógrafo ou nada, mas dado com carinho, vou ouvir mais.
A voz desta baiana de Niterói, lugar que tem a melhor vista
deste mundo (a minha cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro)
e nos deu Leila Diniz, está bem melhor. O repertório idem.
É um CD que dá gosto de saber que saiu. Daqueles que pode
deixar o laser afundando sem cansar. Neste ponto, aliás,
dou sorte. Os outros acima citados (dos barbudos) têm igual
destino. As 12 músicas são de se ouvir e repetir, como faço
agora. Não é o caso de descartar uma ou outra, como em muitos
CDs.
Adoro
vozes femininas na MPB. Traço aqui algumas: Ângela Ro Ro,
Marina. Cássia Eller, Paula Lima, Fernanda Porto, Zélia
Duncan, Wanda Sá, Luciana Souza, Fernanda Abreu, Badi Assad,
Mônica Salmaso, Ana Salvagni, Maria Bethânia, Consuelo de
Paula, Ana Carolina, Elis Regina, Maysa, Nana Caymmi, Márcia
Salomon, Leila Pinheiro, Verônica Sabino, Joyce, Olívia
Byington, Rita Lee, Paula Toller, Fernanda Takai, Amaranto,
Beth Carvalho e, claro, a citada Tatiana Rocha. Cada uma
na sua praia... Acho que as vozes femininas têm um quê a
mais. Quando quero ter paz, coloco uma para cantar. Como
hoje... Estou agora com "Um pouco acima do chão" (para comparar)
e me redimo. É difícil ver diferença de qualidade entre
os dois. Daquela menina de quase dez anos a se atracar com
o percursionista e nos intervalos a cantar e vender o seu
CD para esta escritora de internet que tem uma verve e uma
veia irônica e humorística fantásticas pouco mudou. Talvez,
como vinho, haja um plus no segundo CD. Neste caso, sou
testemunha de mim mesmo, meu segundo livro (inédito ainda)
é bem melhor que o primeiro. Creio. "Tatiana Rocha" é assim.
Um CD com 12 músicas e uma brincadeira no final com trechos
da gravação que vale a pena ter capa (para ela colocar a
dedicatória) e estar nas lojas especializadas.
Mas,
como disse no início, Deus não existe. Por isso há tantos
artistas fantásticos, como os que eu citei acima, longe
do sucesso. Uns integrados ao seu mundo, como o hippie de
Mauá a tocar seu violão na praça, cercado de outros hippies
perdidos lá desde que década sabe-se lá, outros ainda na
busca de reconhecimento. Mas o que é o reconhecimento? É
estar na mídia e tocar no Domingão do Faustão? Tem gente
que não nasceu para isso. E nem o mundo terá evoluído tanto
para digerir a qualidade musical dessas coisas raras. Talvez
por isso este povo cante, feito cigarra, para poucos. Só
os poucos que se propõem a ouvir o canto das cigarras sabem
a beleza desse romper de música depois de anos sob a terra.
E olha que já vi gente pedindo inseticida para matar as
cigarras pelo "barulho chato" que elas fazem.
O
mundo é louco. A vida é louca e curta. Por isso há momentos
e emoções que são para poucos. Tatiana Rocha, assim como
tantas mulheres que ouço, é para poucos. Para os que sabem
discernir música de uma mistura de sons. Mas, por outro
lado, isto é uma merda, porque a obriga a vender planos
de saúde e perder o pouco tempo nesta Terra com coisas que
não foram feitas para ela. Porém, melhor ser ouvida por
poucos ouvidos como vinho ou uísque antigos. Bem melhor
saber que o "nosso público" gosta da gente pela qualidade,
não pela forçação de barra da gravadora e seus jabás. É
melhor cantar para poucos do que matar alguns idiotas que
se dispõem a "ouvir" e morrer por um tal de RDB... É bom
ser "coisa rara".
Enfim,
escrevi isto num repente, porque prometi, para fazer uma
"crítica" do disco. Mas como criticar o que é bom e incriticável?
Tenho poucos leitores, mas comprem este CD, se acharem.
Mesmo sem autógrafo. Vale a pena. É música, é poesia, é
um tesouro para poucos.
Obrigado,
Tatiana. Pena não ter visto você ao vivo, porque aí exigiria
a dedicatória numa folha qualquer, só pra depois encartar
na capa que produzi para o teu CD. Numa noite quente, entre
umas cervejas e uma pura, consegui curtir um pouco a minha
curta estadia por aqui...
Ps.:
De igual Tatiana e eu temos um Lucas da mesma idade. E outro
moleque para fazer companhia aos nossos Lucas. De diferente,
a sensibilidade da voz, dada a poucos para fazer do nosso
dia-a-dia urbano e proletário uma realidade um pouco melhor,
mesmo sem "Deus".
Do
fã...
Ps2:
Vendo a data agora, às 1h12 e outra pura a mais, vejo que
viajei na maionese. Fiz uma crítica para 200 anos anos além.
Quem sabe nesta data não terão dado à Tatiana o lugar devido?
Não vou mudar.
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